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Pertenço a uma História que existe/ na memória dos tempos,

suturada no útero desse povo, (...)

Não me curvo ao silêncio/ dessa versão perversa e lúcida,

que torna invisível tudo o que estou (...)

que roubam detalhes, fingem fatos,/ e inumanos desfiguram vidas e verdades.

Busco no tempo um tempo/ maior que ele mesmo,

que se abra em inevitável caos,/ e deixe florir a fúria da História,

e deixe fluir toda a insurreição do silêncio

como uma eufórica sangria na memória. (...)

(Éle Semog, Coisas dessa gente que sou)

O poema em epígrafe do escritor negro-brasileiro Éle Semog atua como provocação para abordarmos rasuras da participação de negras e negros na história de Brasil e de Cabo Verde, a partir das obras poéticas do supracitado autor e do cabo-verdiano José Luis Hopffer Almada. A motivação para essa investigação ocorre pela ausência do protagonismo de negros e de negras nas literaturas canônicas desses países, assim como de acontecimentos históricos que marcaram a resistência dos negros durante o período escravocrata de ambos os países, então colônias de Portugal. Para alcançar o objetivo por nós proposto, a análise considerará a memória e o uso de uma linguagem contradiscursiva com a “ideia de novo como ato insurgente da tradução cultural”, não apenas retomando o passado, mas reconfigurando-o “como um ‘entre-lugar’ contingente, que inova e interrompe a atuação do presente” (BHABHA, 1998, p. 27). É a partir dessa inovação salientada por Homi Bhabha que percebemos as propostas desenvolvidas por esses autores como suplemento, no entendimento de Jacques Derrida (1971, p. 245) que afirma:

Não se pode determinar o centro e esgotar a totalização porque o signo que substitui o centro, que o supre, que ocupa o seu lugar na sua ausência, esse signo acrescenta-se, vem a mais como suplemento. O movimento da significação acrescenta alguma coisa, o que faz que sempre haja mais, mas esta adição é flutuante porque vem substituir, suprir uma falta do lado do significado.

Inovar e suprir as ausências do texto literário são alguns dos tensionamentos essenciais dos sujeitos líricos desses poetas, que buscam desvelar a resistência dos negros sob uma ótica e subjetividade negra durante o colonialismo e apagadas dos discursos oficiais, tais como nos poemas do caderno “Ralando no BR”, incluído no livro “Tudo que está solto” (2010), de Éle Semog, e “Monte-Agarro”, de José Luis Hopffer Almada, inserido em “Praianas – revisitação do tempo e da cidade” (2009), os quais pretendemos analisar.

Mas, como são essas ausências na literatura brasileira e na literatura cabo-verdiana? No caso brasileiro, acompanhamos o pensamento de Regina Dalcastagne quando afirma que “a literatura contemporânea reflete, nas suas ausências, talvez ainda mais do que naquilo que expressa, algumas das características centrais da sociedade brasileira” (DALCASTAGNE, 2011, p. 309). Fora do protagonismo nas grandes esferas da sociedade, os negros enfrentam barreiras de diversas ordens diante da hipocrisia do discurso predominante da democracia racial. Para a ensaísta Soares Fonseca (2011, p. 13):

Assumir-se negro numa sociedade cujos referenciais de beleza passam pelos traços europeus, que também nela se mostram, é uma atitude de enfrentamento quase sempre diagnosticada como decorrente de rancor que não tem motivo para existir. Em vez de lidar com as formas discriminatórias que produz, o senso comum descarta a questão porque acredita que vivemos numa sociedade que não tem preconceitos. O mito da democracia racial continua a perpetuar entre nós.

Como fortalecimento dessa postura, o não reconhecimento do branco brasileiro como perpetuador do racismo nas suas omissões e distorções, tratando o problema como exclusivo dos negros que desejam embranquecer. Silva Bento (2002, p. 26) aponta de forma enfática para a hipocrisia desse discurso:

Eles reconhecem as desigualdades raciais, só que não associam essas desigualdades raciais à discriminação e isto é um dos primeiros sintomas da branquitude. Há desigualdades raciais? Há! Há uma carência negra? Há! Isso tem alguma coisa a ver com o branco? Não! É porque o negro foi escravo, ou seja, é legado inerte de um passado no qual os brancos parecem ter estado ausentes.

O nosso texto literário canônico ilustra uma sociedade que segue os padrões europeus “brancocêntricos” na medida em que exclui os negros, os trata de forma caricata, não assumindo os problemas do seu tempo e do seu meio, sem família ou manifestação de afetividade, quase nenhum envolvimento na narrativa, sendo quase um objeto que pode ser descartado a qualquer momento, assim é a personagem negra. Retrata-se uma visão enraizada do negro como escravo, ao qual o escritor branco é incapaz de subverter. Por isso, a necessidade de uma literatura com viés negro. Para o escritor e ensaísta Cuti (2010, pp. 44-45):

A literatura negro-brasileira nasce na e da população negra que se formou fora da África, e de sua experiência no Brasil. A singularidade é negra e, ao mesmo tempo, brasileira, pois a palavra “negro” aponta para um processo de luta participativa nos destinos da nação e não se presta ao reducionismo contribucionista a uma pretensa brancura que a englobaria como um todo a receber, daqui e dali, elementos negros e indígenas para se fortalecer. Por se tratar de participação na vida nacional, o realce a essa vertente literária deve estar referenciado à sua gênese social ativa. O que há de manifestação reivindicatória apoia-se na palavra “negra”.

Já Cabo Verde possui suas especificidades, mas é possível o diálogo com a literatura brasileira e a condição do negro na sociedade. Lá, como cá, foi uma sociedade escravocrata no passado, com alto índice de mestiçagem, e trata-se a questão de classe como primordial ao problema racial, sendo o cabo-verdiano um caso único. O ensaísta Cláudio Alves Furtado (2012, p. 144) chama atenção para

tanto no período colonial quanto no pós-colonial, raras são as tentativas de se compreender sociologicamente como, em Cabo Verde, os diversos atores emergem e se constroem enquanto sujeitos históricos. É muito mais comum encontrar-se uma preocupação em situar e definir a especificidade do homem, da cultura e da sociedade cabo-verdiana.

O que entendemos como uma postura insensível e que oculta a questão racial, haja vista a discriminação sofrida pelos negros oriundos do continente africano chamados pejorativamente de mandjakos, marcando rejeição ao fenótipo negro, conforme analisa Furtado (2012, p. 168) a partir de tese de doutorado de Eufémia Rocha:

a designação mandjako, porque de uma etnia se trata, tem como base de apropriação a raça (negro-africana), negando a condição negra do cabo-verdiano, uma vez que esse se assume como mestiço. Citando a autora antes referida que, por sua vez, transcreve a fala de um dos imigrantes, o caboverdiano considera e classifica: “mandjakus são todos os africanos, todas as gentes pretas que vêm da África”.

Dificuldade ao lidar com a presença negra em Cabo Verde, constrangimento ao revisitar o passado escravocrata, conforme afirma o historiador António Carreira (1983, p. 19):

O tema tratado é ingrato e por motivos diversos não entusiasma a maioria dos leitores. Seja por preconceito próprio de uma educação tradicionalista (no mau sentido do termo), seja por receio de descontentar certos sectores, tudo quanto envolva a apreciação do tenebroso período da escravatura mexe com a maneira de ser de algumas camadas da nossa sociedade.

Tais dificuldades, ou melhor seria ausência, também aparecem no texto literário cabo-verdiano, visto que as diversas revoltas contra o sistema escravocrata ocorridas no século XIX aparecem de forma tímida na literatura do arquipélago, pois “raramente aqueles escritores (‘da geração claridosa’) se debruçam sobre as grandes revoltas camponesas da ilha de Santiago. Mas descrevem repetidamente as revoltas urbanas do Mindelo ao qual se sentem associados” (ANJOS, 2006, p. 139).

Além disso, a literatura cabo-verdiana é uma literatura à margem das literaturas lusófonas, sendo ainda majoritariamente reconhecida dentro das literaturas africanas de língua portuguesa, caso do Brasil. Entretanto, durante o período colonial já havia uma literatura autônoma, mas que não era aceita nem bem vista pela metrópole, que determinava a terminologia dos textos produzidos nas ilhas. O crítico literário português/cabo-verdiano Manuel Ferreira (1985, p. 110) esclarece esse momento:

Por essa data, em Portugal, em relação à poesia (literatura) africana de língua portuguesa não se utilizava tal designação, quer em livro individual quer em antologias, revistas ou jornais. Seria contrariar os cânones estabelecidos pelas instituições oficiais, bem apoiadas na Censura e na Pide. Para os poderes instituídos – mesmo mais tarde quando as literaturas africanas se desenvolveram em ritmo acelerado – a palavra “africana” e, ainda mais, a palavra “negra” eram conotadas como subversivas, dado que contrariavam o esquema de portugalidade. O que significa que o próprio título era por si só um desafio a todos, incluindo os teóricos oficiais que consideravam toda a literatura feita nas colônias um prolongamento da portuguesa; por isso a denominavam ultramarina, mas sempre preferiam a designação de literatura portuguesa em África. (...)

Percebemos quantas são as barreiras para os negros nas sociedades de Brasil e Cabo Verde. Por conseguinte, temos o apagamento de seus feitos e memórias de nossos antepassados. Por isso, acompanhamos Michael Pollak quando considera que a “memória é seletiva”, principalmente quando se trata de identidade e da memória hegemônica da nação. Pollak (1992, pp. 204-205) considera que

Quando se procura enquadrar a memória nacional por meio de datas oficialmente selecionadas para as festas nacionais, há muitas vezes problemas de luta política. A memória organizadíssima, que é a memória nacional, constitui um objeto de disputa importante, e são comuns os conflitos para determinar que datas e que acontecimentos vão ser gravados na memória de um povo. (...)

[Ou seja] a memória e a identidade são valores disputados em conflitos sociais e intergrupais, e particularmente em conflitos que opõem grupos políticos diversos.

Como os negros não são grupos majoritários em ambos os países, a pertinência da poesia de José Luis Hopffer Almada revisita o passado e revelar as origens afro-crioulas de Cabo Verde, mais especificamente da Ilha de Santiago. Para o autor (2009, p. 5):

A memória é um lugar onde se podem resguardar muitos milagres. Lugar de refúgio e de ancoragem, pode por outro lado ser constantemente reencenado nos termos propostos pela imaginação e pelo engenho do criador que se propõe revisitá-la. Para além dessa pressão incontornável, creio importante empreender algum labor de resgate do passado histórico de Cabo Verde e, especialmente, de Santiago, ilha particularmente vituperada durante grande parte do período colonial e do período pós-Independência. Tem-se por vezes a impressão de que alguns se especializaram na ocultação da história da ilha, das suas populações, das suas elites, das suas manifestações culturais mais características... Contra a amnésia (deliberada e induzida) há que contrapor a memória e as suas revisitações. (...)

José Luis Hopffer Almada é um nome incontornável na poesia, na crítica literária, no ensaio e na promoção da cultura de Cabo Verde. Com vários títulos de poesia publicados e ensaios de crítica literária cabo-verdiana. Este projeto pretende apresentar a contribuição de seus textos à reflexão crítica da história e à formação identitária afro-crioula cabo-verdiana. Consubstanciada por vários heterônimos e pseudônimos, sua obra poética propõe-se abrangente, de múltiplos olhares sobre si e do mundo que o cerca, procurando explorar ao extremo as diversidades formais e estéticas que a poesia possibilita. Com isso, lidamos com os nomes de Alma Dofer, Erasmo Cabral d’Almada, Dionísio de Deus y Fonteana, Tuna Furtado, Zé di Sant’y’Águ, este posteriormente transfigurado para NZé di Sant’y’Águ. Em razão do espaço exíguo deste artigo, mencionaremos somente as características deste e o qual foi atribuído a autoria do poema Monte-Agarro. Criado em 1978, na Assomada (1990, p. 14):

Zé di Sant’y’Águ é “a minha personalidade castiça e lusófona, profundamente ancorada no chão telúrico de Santiago de Cabo Verde (...), simboliza a sacralização dos elementos essenciais da nossa mitologia: os santos (em primeiro lugar, o Santo Iago (...) e a Água; a ilha, a raiz do arquipélago. Zé sou eu.

Entretanto, Zé di Sant’y’Águ ganhou o acréscimo do N em NZé, “o eu forte e afirmativo, a primeira pessoa do singular cabo-verdiano”, tornando-se Sant’y’Águ e configurando assim a sua maturidade poética, restando ao antigo heterônimo os poemas tecidos na escrita crioula. Esclarece o poeta (2005, p. 66) que:

NZé di Sant’y’Águ representa uma personalidade poética que se quer plenamente amadurecida e capaz de superar pelo seu aperfeiçoamento a linguagem e a escrita poéticas de Zé di Sant’y’Águ, nas suas modalidades lusógrafa e crioulógrafa, superação essa também testemunhada pela aguda maturidade da nova “Assomada Nocturna”.

Não menos preocupante é a memória na obra de Éle Semog, nome de Luis Carlos Amaral Gomes, natural do Rio de Janeiro, analista de sistema, pedagogo, atuante em movimentos sociais e na luta contra a discriminação racial no Brasil. Fundou o CEAP. Fundou, em 1984, o Grupo Negrícia – Poesia e Arte de Crioulo. Foi co-fundador e articulista do jornal Maioria Falante. Foi assessor do senador Abdias do Nascimento. Com textos publicados em várias edições de Cadernos Negros e uma obra poética que o coloca como um cânone da literatura negro-brasileira contemporânea.

Para analisar a obra de Semog e Almada recordamos Fanon quando este afirma que “atribuímos uma importância fundamental ao fenômeno da linguagem. (...) Uma vez que falar é existir absolutamente para o outro” (FANON, 2008, p. 33). Fanon remete ao pensamento de W.E.B. Du Bois, que menciona a “consciência dupla, essa sensação de estar sempre a se olhar com os olhos dos outros” (DU BOIS, 1999, p. 54). Sendo assim, relembramos o conceito de “literatura menor” de Deleuze e Guattari, que se enquadra na literatura produzida por negros em nosso entendimento, visto que se propõe a “desterritorializar a língua maior (...), ter que conquistar a sua própria língua, isto é, chegar a essa sobriedade no uso da língua maior, para colocá-la em estado de variação contínua” (DELEUZE, GUATTARI, 1995, p. 55).

Nos poemas de “Ralando no BR”, Semog “produz um espaço de representação antagônico porque é contestador das construções homogeneizadoras (...) [e procura] insurgir-se contra os tradicionais sistemas de representação” (SOUZA, 2006, p. 67), alinhando com sua linguagem simples, corrosiva e irônica a perversidade da colonização e do tráfico negreiro ocultada pelos livros de História (2010, p. 80):

Engenhosa violência a do sistema,/ que arrancava d’África os negros,/ diziam ser aquele gentio peças das índias,/ e os transportavam em fétidos tumbeiros./ Com sincera fé católica e voraz volúpia/ por quase quatro séculos Portugal/ seu rei, suas elites,/ construíram a história mais triste/ que a humanidade tem para contar

Recordamos o historiador Joseph Ki-Zerbo quando diz que “nenhuma coletividade humana foi mais inferiorizada do que os negros depois do século XV” (KI-ZERBO, 2009, p. 24) e o sujeito lírico não exime a culpa da Igreja Católica: “Comprar e vender aquela gente negra,/ que ao embarcar o clero batizava por dinheiro,/ e em nome dos céus dava o inferno inteiro” (SEMOG, 2010, p. 81). Assim como a importância da revisitação ao passado por um discurso valorativo negro com outras perspectivas de análise e crítica, contrapondo-se à história oficial: “restam poucos documentos sobre isto,/ desses fatos ninguém lembra, ninguém viu,/ como se aquelas multidões nos portos,/ nos porões, nos pelourinhos,/ fossem no tempo e na história uma miragem,/ e o algoz um erro acidental, um descaminho” (SEMOG, 2010, p. 81).

Este último excerto mostra a necessidade de enegrecer a reflexão crítica do passado, pois, segundo Silva Bento: “o legado da escravidão para o branco é um assunto que o país não quer discutir, pois os brancos saíram da escravidão com uma herança simbólica e concreta extremamente positiva, fruto da apropriação do trabalho de quatro séculos de outro grupo” (BENTO, 2002, p. 27).

Uma vertente bastante marcante da obra poética de José Luis Hopffer Almada é o resgate de cenários, protagonistas e revoltas antiescravocratas do passado, principalmente da ilha de Santiago, “importante recordar que esta ilha é por 85 anos, de 1462 a 1547, ponto de concentração de escravos a exportar” (HERNANDEZ, 2002, p. 40), buscando a valorização da afro-crioulidade na identidade cabo-verdiana. Há um contexto histórico de contestação à ordem estabelecida, da já anunciada falência do sistema, da fome, dos ciclos de seca no século XIX que motivaram as revoltas dos Engenhos (1822), Monte Agarro (1835) e Achada Falcão (1842), por exemplo.

Com esta perspectiva que Almada procura desvelar o passado colonial cabo-verdiano nos poemas de seu heterônimo NZé dy Sant’Y’Águ, tal como aparece no poema “Monte-Agarro”, incluído no livro “Praianas” (2009, p. 95-96). Este poema retrata a malograda insurreição antiescravocrata protagonizada por Gervásio, Narciso e Domingos em 1835, que pretendia extinguir o sistema escravista, matar os senhores brancos e tomar a ilha de Santiago, tornando-a um Haiti cabo-verdiano (ALMADA, 2007). Entretanto, a rebelião conseguiu ser sufocada através de uma denúncia, seus líderes presos e a repressão deveria ser exemplar, pois, segundo os autos da época registrados por Barcelos (1904, pp. 224-225):

Presente sublevação a mais séria que tinha aparecido e de que não havia memória; resolveu-se por fim, (...) que se deviam fuzilar os indiciados (...) e era evidente a todas as luzes, tornando-se urgente necessidade que quanto antes se desse um golpe decisivo que prevenisse a explosão para não se lamentarem vítimas; que se impunha o fuzilamento nesses casos, porque o açoite, ainda que repetido, mostrava a experiência de pouco eficácia em gente tal, já pelo hábito de os sofrer desde a infância, já pela sua constituição física, pouco sensível, ou também pela falta neles de todo o sentimento de honra e brio.

A fria descrição dos autos acima retrata o pensamento dos feitores, “para os quais administrar é sinônimo de oprimir e maltratar” (HERNANDEZ, 2002, p. 53). Com o insucesso desta rebelião, as metáforas virulentas demonstram a crueldade que os escravos enfrentariam: “Não sabias/ Gervásio/ que a morte/ é simplesmente uma corda/ enlaçada à neblina do cativeiro// Não sabias/ Narciso/ que a morte/ é um gume/ uma faca de sisal/ um nó abrupto e súbito/ ou o espectro da traição/ abraçados ao teu corpo/ e à sua dura verticalidade” (ALMADA, 2009, p. 96). Logo em seguida, o questionamento angustiado do sujeito lírico acerca das reais possibilidades de vitória aumenta com a ausência da pontuação e a brevidade dos versos: “Tu o que sabias/ Gervásio// Tu o que sabias/ Narciso// Tu o que sabias/ Domingos” (ALMADA, 2009, p. 96). A partir da indagação, o poema encerra-se recordando outras revoltas malogradas: “era esse o destino/ de monte-agarro fonteana/ julangue serra-malagueta/ e dos cavalos da sua noite exausta/ resfolegando contra os próceres/ do morgadio e do pelourinho...” (ALMADA, 2009, p. 96).

Destacamos a pertinência das obras de Éle Semog e de José Luis Hopffer Almada como basilares para a reconstrução da memória dos negros tanto no Brasil quanto em Cabo Verde, desenvolvendo o texto literário como objeto de atuação crítica perante as rasuras da história, agindo como intelectuais no sentido expresso por Edward Said (2000, pp. 52-53):

Em tempos difíceis, o intelectual é muitas vezes considerado pelos membros de sua nacionalidade alguém que representa, fala e testemunha em nome do sofrimento daquela nacionalidade. (...) A essa tarefa extremamente importante o sofrimento coletivo de seu próprio povo, de testemunhar suas lutas, de reafirmar sua perseverança e de reforçar sua memória, deve-se acrescentar uma outra coisa, que só um intelectual, a meu ver, tem a obrigação de cumprir (...) encarnar a experiência histórica de seu povo em obras de arte (...) Nesse sentido, penso que a tarefa do intelectual é universalizar de forma explícita os conflitos e as crises, dar maior alcance humano à dor de um determinado povo ou nação, associar essa experiência ao sofrimento de outros.

Para finalizar, gostaríamos de acrescentar que acompanhamos o conceito de Atlântico Negro de Paul Gilroy e as aproximações entre as populações negras na diáspora, suas trocas desterritorializadas, simultâneas e hibridizadas, suas negociações nas sociedades que os discriminam devido à ascendência africana. Por isso, o retorno às origens africanas como reconfiguração identitária e de autoafirmação negra. Sendo assim, entendemos que as obras poéticas do brasileiro Éle Semog e do cabo-verdiano José Luis Hopffer Almada contribuem para rearticulações contradiscursivas de resistência e de valorização de negros e negras contra as táticas também mutáveis de supressão da memória e da identidade negra de Brasil e Cabo Verde.

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