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No início da década de 1970, os escritores e escritoras negras viviam todas as espécies de solidão, mas duas delas eram mais aflitas, pois não se tratava de um lugar comum do ofício e o que é pior, se impunham à revelia da disponibilidade existencial de cada um.

Uma dessas solidões era provocada pelos escritos de gaveta, de emoções e sentimentos aprisionados, de verdades incertas, de certezas voláteis e silêncios exasperados; como se houvesse punição à força daquela criação que não se desnudava. Outra dessas solidões se traduzia na participação singular nos grupos literários formados por maioria de autores brancos, onde o texto, sempre que quando negro, negritude, negrícia, extrapolava a coisa literata e de modo inexplícito vagava no limbo de uma atitude social nem sempre provida de sutileza. Algo assim como um boi da cara preta e nada mais que isso, ou um Pelé, e nada mais que isso, naquela literatura que praticávamos.

Cada um sem saber da existência de tantos, quase que emparelhados, esses escritores e escritoras transitavam por uma espécie de labirinto, sem achar uma saída comum, um lugar de encontro, que permitisse alçar outros vôos.

A palavra escrita cor da pele começou a impor-se em meados dos anos setenta carregada de anseios por uma unicidade nesse fazer negro com o verbo. Entretanto, a razão coletiva conduziu aquele arrojo, de cor sincera, na intenção de construção de uma identidade literária, como já vinha ocorrendo nas Antilhas, nos Estados Unidos e com os autores africanos que viviam na Europa. Antes porém, experimentamos algumas ousadias isoladas, mas pouco, muito pouco, e que não chegou a caracterizar um grupo de autores negros brasileiros escrevendo com plena identidade racial.

Vale a pena observar que naquele início, quando ainda não tínhamos estreitado as relações literárias, as mulheres negras que detinham a sensibilidade e o dom da poesia eram chamadas de poetisas. De repente, quando a intimidade tornou-se convivência do ofício e explicitou a singularidade e a natureza feminina daquele modo dos versos, elas exigiram serem ditas poetas. Poetas negras. Num manejo ideológico naquele espaço de aplicação do idioma, que de certo tinha propósito mais do que óbvio às suas pretensões de escritoras. Eram mulheres negras que também se aplicavam às outras lutas.

A anistia política, a euforia do milagre econômico simulado pela ditadura militar, a pressão dos movimentos sociais, a vitalidade e determinação dos movimentos artísticos, as organizações dos trabalhadores e das associações de moradores, tudo isto carregado de racismo e de exclusão, impunha às lideranças políticas da comunidade negra a necessidade de redimensionar a sua lógica de luta, a sua organização e as suas formas de inserção naquele mercado político e social, que se descortinava com todas as nuanças de perspectivas democráticas.

Com proposições instigantes e pertinentes, como o “quilombismo” de Abdias Nascimento, que propunha a presença de 50% de mulheres negras em todos os níveis decisórios da comunidade negra, a consagração do 20 de novembro como a Data Nacional da Consciência Negra e do Bloco Ilê Ayê, que restringia a participação de brancos nas suas fileiras durante os desfiles de carnaval; o Movimento Negro buscava atualizar-se e acrescentar novas bases filosóficas, num contexto cuja dialética era interpretada de maneira vorazmente reformista.

Esse esforço manietado por forte influência das esquerdas brasileiras, que jamais considerou os quatro séculos de trabalho escravo e o racismo praticado no Brasil, como fatores primários para a compreensão da arquitetura das classes e dos enfrentamentos que daí decorrem, implicou numa série de contratempos que ainda hoje têm conseqüências estruturais no fazer político do Movimento Negro.

Recebendo inspiração da história e dos fatos do mundo, que por um lado mostravam os países africanos em plena ação de expurgo do colonialismo europeu e num surto de governos socialistas; e por outro os negros estadonudenses avançando nos confrontos e conquistas para a garantia dos direitos civis e progresso econômico; os ativistas negros - uns eram quadros de organizações e outros orgânicos de comunidades -, estavam incertos à qual fidelidade se dedicar na perspectiva de uma luta comum.

Daí surgiram as duas primeiras vertentes a se consolidarem com proposições antagônicas ainda vigentes: uma tem por perspectiva a ascensão social e financeira, privilegiando a oportunidade, a competência, o mérito e o esforço do indivíduo, buscando minimizar seus conflitos externos para possibilitar e ampliar seu status de assimilado. A outra, busca a gestão sobre a própria identidade, a reformulação e apropriação dos preceitos constitucionais, a transformação e expansão da consciência crítica e política do coletivo, com um ideário orientado para o avanço em escala da comunidade.

Pode-se afirmar que este conflito também ocorreu e se instalou entre os escritores negros, principalmente no eixo Salvador, Rio, São Paulo, Rio Grande do Sul, onde se delineou uma espécie de esfera da consagração.

Era de fato um tempo de contradições em tudo que se buscava como fundamento para o progresso da população negra, ainda assim o Movimento Negro consolidou uma nova fase da sua ação política. E foi no bojo dessa pulsão histórica, que surgiu (e se insurgiu) de forma impetuosa no cenário social e político, o que pode ser considerada a primeira geração de escritores negros, a maioria absoluta se expressando por meio de poesia e de contos.

Origem

Era significativa a presença de artistas, em particular de músicos, fotógrafos, atores, dançarinos e artistas plásticos, nas reuniões políticas do Movimento Negro. Mas ao contrário de servir como um dos principais recursos táticos daquele processo, a arte era considerada, naquelas reuniões, como um apêndice da ação política, temporalizada com função lúdica nos festejos e eventos promovidos em determinadas ocasiões. ( Há pelo menos uma ressalva - talvez existam outras - , que se refere ao trabalho de realizado pelo grupo de mulheres do Movimento Negro Unificado do estado da Bahia, que montava seus espetáculos com os textos dos poetas negros).

Essa postura não pode ser considerada de todo como um erro estratégico. O que ocorria com a militância, como ainda hoje, era uma intuição coletiva de pertencimento a uma cultura que se instalou e superou o estágio de resistência, adquiriu magnífica capacidade transformadora, evoluindo para um contínuo processo de expansão.

Estes fatores que se conjugam, faziam com que a cultura negra e suas manifestações fossem entendidas como se ela, por si só, tivesse capacidade autogestionária e que essa capacidade possibilitasse a ação revolucionária e a implementação da luta política.

De qualquer forma os atores, os artistas plásticos, os dançarinos, os músicos, os cartunistas e outros artistas, organizavam os seus próprios e específicos grupos de trabalho e implementavam ações autônomas, mas que não revelavam a articulação necessária para se caracterizar como uma intervenção política e sistêmica naquele contexto. Considere-se entretanto, que uma cultura hiperativa como a cultura afro-brasileira não poderia transitar como movimento cultural sem sofrer, por parte da estrutura na qual está inserida, toda sorte de retaliações, preconceitos e discriminações, como ocorre ainda nos dias atuais.

Hoje é mais perceptível que a cultura negra brasileira, embora seja um sistema extremamente radical na sua forma de operar, consolidou-se, contraditoriamente, com um alto grau de flexibilidade. Nesse sentido as ações decorrentes da consciência coletiva de escravo – base social da identidade negra no Brasil -, não se resumiram apenas as revoltas, as irmandades religiosas, aos quilombos, as mandingas, as aquisições de alforrias, ou aos suicídios.

Desde a chegada dos primeiros prisioneiros de guerra africanos ao Brasil, se desenvolveu uma espécie de anti-etnografia, que impossibilitou a definição de qualquer tipo de paradigma racial, cujos resultados estão no sincretismo imposto ao catolicismo, nas diversas variações da música e da dança, nos hábitos alimentares, nas formas de organização e associativismo, nas artes de uma forma geral e nas literaturas oral e escrita.

Os escritores, a maioria de jovens militantes, começaram a perceber a necessidade de buscar suas próprias respostas, pois o Movimento Negro era amplo demais para a especificidade da literatura. Um outro problema era que o conjunto daquelas práticas, de uma forma ou de outra, transparecia heranças que não interessavam aos escritores.

É fato reconhecido que a atividade intelectual do Movimento Negro contribuiu, e muito, para que os escritores se articulassem, principalmente nas capitais dos estados, onde o trabalho contra o racismo era mais intenso. A fala e o texto poético foram aparecendo aqui e acolá de forma sutil. Ora na confidência a um amigo, ora numa declamação depois do encerramento de alguma daquelas reuniões.

Autores importantes da comunidade negra como Oswaldo de Camargo, de São Paulo, que inclusive fez o prefácio do meu primeiro livro, Oliveira Silveira, do Rio Grande do Sul, Adão Ventura, de Minas Gerais, Solano Trindade, de Pernambuco, radicado no Rio de Janeiro, e mesmo Abdias do Nascimento, paulista da cidade de Franca, poeta de poucas vezes, mas que com suas peças teatrais e discursos políticos, carregados com aquela forma visceral e comum de existir, passaram a ser mais freqüentes na leitura cotidiana dos novos poetas negros, ao mesmo tempo em que iniciávamos uma releitura e apropriação de Luís Gama, Lima Barreto, Cruz e Sousa, Machado de Assis, Lino Guedes. Nessas circunstâncias os “famosos, importantes e clássicos poetas brasileiros”, os monstros sagrados, começaram a perder a magnitude como referência não só de inspiração e de criação, mas principalmente como mestres da poesia. Não sabíamos que era preciso radicalizar para nascer, mas como um feto autodidata, fizemos nosso próprio parto. E ali, no nascedouro, já fomos ditos poetas negros radicais, porque nascemos negros.

Para nós a Literatura Negra, ou Literatura Afro-brasileira se constituía, naquele momento, como um instrumento de primeira grandeza para novas possibilidades. Foi uma revelação, como se os búzios...(ao ler este texto faça um gesto de jogar búzios), como se as favas..., jogadas assim, diante do tempo... fossem de fato essa certeza do negro brasileiro poder se desligar da África.

Como já tivemos a oportunidade de constatar, o racismo existe como uma prática do modo cultural brasileiro. É um sistema, obedece a uma metodologia, e na literatura, expressão máxima da inteligência nacional, ele se manifesta objetivamente ao longo dos séculos, por meio das obras dos nossos melhores autores, tais como Aluísio de Azevedo, José de Alencar, Monteiro Lobato, Jorge Amado, Carlos Drumond de Andrade, Manuel Bandeira; são poucos os citados aqui, mas a relação é imensa, pois os negros, as crianças negras, as adolescentes negras, as mulheres negras, os velhos negros, e suas existências subjetivas e objetivas, são fontes inesgotáveis de criação.

São autores de reconhecida importância, não só aqui, como também pelo mundo a fora. Mas se observarmos a forma como surgem as personagens negras em suas obras, vamos encontrar sempre os mesmos estigmas: mulheres lascivas, fogosas e fofoqueiras, homens ignorantes e irresponsáveis, crianças animalizadas, e no geral um povo bestializado, desprovido de um sentimento de carinho, de respeito, de esperança, de amor, ou de alguma manifestação, ao menos próxima, do que se pode identificar como herança humana. Por muito menos do que os papas da literatura brasileira escrevem por aqui, o escritor Saiman Rushdie foi condenado a morte.

Por estas e outras constatações, foi que os autores negros brasileiros começaram a se organizar em meados da década de 1970, com o objetivo de enfrentar o racismo na literatura brasileira, produzindo uma obra protagonizada por personagens negros que pudessem expressar o amor pelo filho, a dor e a alegria de sua história, o carinho, o medo, a solidariedade, o tesão, a amargura, a vingança, o beijo na boca, o triunfo, a alegria da música e da dança, a vida e seus mistérios e tudo mais que pudesse ser representativo da grandeza de poder ser o sujeito de si próprio, e não um objeto fantasioso do imaginário racista.

Em 1986, quando já existiam mais de 100 escritores negros dos diversos estados do Brasil se comunicando entre si, ao participarmos da III Bienal Nestlé de Literatura, provocamos algum incômodo ao expormos o seguinte conceito:“Literatura Negra é aquela que trata no seu conteúdo e temática, contexturas onde os personagens (ou fatos) se desenvolvem, segundo princípios e terminalidades históricas, relacionadas no tempo e no espaço com aspectos do indivíduo, da família e dos povos negros, em função de relações sociais conhecidas ou decodificáveis, implicando no resgate dos valores da comunidade negra e sugerindo direta ou indiretamente o progresso das pessoas que vivem a afro-diáspora”.

Embora frágil, naquele momento este conceito tornava público a reflexão, o protesto, o inconformismo e a insurreição daqueles jovens que não se submetiam à lógica do racismo escrito.

Da mesma forma que não podemos desagregar a unicidade contida na simbiose do bem com o mau, A Literatura Negra, especificamente a Afro-brasileira, tem um caráter político e pedagógico irrefutável. Assumir este modo de fazer literatura, que muitas vezes se resguarda de forma equivocada no teor da melanina, significa poder intervir na ordem vigente, na incerteza dos fatos, na construção dos sonhos e do destino, que não-raro são determinados pelos caprichos do pensamento dominante.

Nesse panorama, é praticamente impossível para o escritor negro exercer a sua atividade apenas com a magia da inspiração e a futilidade das palavras. É necessário imprimir um ritmo à produção, que coadune certos recursos voláteis, transitórios, com outros já enraizados, e mais o conjunto de informações que direta, ou indiretamente influem no cotidiano, criando a referência coletiva, a memória coletiva, a identidade coletiva. Portanto, a utopia em evidência é que a arte literária produzida por uma negra, ou um negro, deva se materializar na forma de resgate e de patrimônio.

No que se refere à estética, o que se busca com a Literatura Negra, na Literatura Afro-brasileira, é uma beleza diversa e desgarrada das escolas européias, que há séculos domina a literatura brasileira e grande parte dos seus escritores. Não se trata de negar a influência de um autor sobre o outro na construção do estilo, ou mesmo expurgar as referências das diversas escolas literárias. Mas é fundamental que o processo de construção da estética da Literatura Afro-brasileira se dê no âmbito da comunidade negra, absorvendo e influindo no seu modo sócio-antropológico. Na moral negra. Na expectativa política, na ancestralidade sistematicamente negada pelos artifícios da democracia racial. O código pode ser o oficial, mas a sintaxe não.

Para o escritor negro engajado, a simbiose da construção, ou a conjugação do código, do enredo, da temporalidade, não se dá apenas pelos parâmetros clássicos da Teoria Literária e da Crítica Literária. Esta investigação e embasamento, para a maior parte dos escritores, se manifesta de forma sub-reptícia, porque o objeto principal – sua obra – cede espaço significativo ao papel que desempenha como pessoa negra na sociedade brasileira, sempre sujeito às farpas dos capitães da criação.

Acredito que a Literatura Negra, Literatura Afro-brasileira, escrita e lida por negros e não-negros que combatem o racismo, é uma literatura de instrumentalização, de auto-conhecimento, de resgate: e a sua contratação é um enunciado contínuo da exposição do novo diante do futuro e do passado, diante da vida e da não-vida. O tempo e seus conflitos, o doce e o amargo, a fecundidade, a morte, não são elementos estanques, fragmentados na arquitetura da personagem, ou do texto. Quando se usa, por exemplo a palavra atabaque na Literatura Afro-brasileira, geralmente ela mobiliza um sem-fim de signos, de símbolos, de energias, de movimentos e de sons. Ao passo que quando se usa a palavra psicanálise, também por exemplo, ela sempre esta ligada a algum tipo de doença, ou a procura de uma cura.

E viva a poesia!