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Nos séculos XV e XVI, com o início da expansão ultramarina, a região que hoje é conhecida como África era genericamente identificada pelos europeus, tanto por conta da expansão colonial quanto pela delimitação de áreas comerciais, como Etiópia (termo de origem grega que refere a país das gentes dos rostos queimados), ou país dos negros.

Com essa expansão os europeus buscavam ter acesso ao ouro, que desde a idade média chegava à Europa por meio de mercadores mulçumanos que, além de outras mercadorias, comercializavam escravos na região.

Entretanto, é corrente o fato mítico religioso de que o surgimento da Etiópia teve início há 1000 a.C., com a união do reino do rei Salomão com o da rainha Balkis de Sabá; desse encontro nasceu um filho que ao assumir o trono de Sabá introduziu a religião judaica naquele reino. No século IV a Etiópia foi evangelizada pela igreja egípcia, que embora pregasse (e pregue) que Jesus Cristo tinha apenas uma natureza divina, não foi impedimento para que Portugal, durante boa parte do século XIV, defendesse aqueles cristãos hereges dos inúmeros ataques e tentativas de dominação por parte dos mulçumanos.

Nesse período Portugal foi um dos países que mais investiu na descoberta de novas rotas em busca de especiarias e do ouro. Embora muitas das iniciativas portuguesas não tenham logrado êxito, as que deram certo mudaram a face da história:

“Na primavera de 1444, seis caravelas deixam Portugal. O Infante D. Henrique concede licença a um consócio de comerciantes. O ano foi fértil do ponto de vista de ‘iniciativas’: Dinis Dias, sustentado por comerciantes lisboetas, arma uma caravela, ultrapassa uma embocadura do rio Senegal, atinge o ‘país dos negros’ e captura quatro jalofos: os primeiros apreendidos ‘em seu próprio país pelos cristãos’. No ano seguinte, 1445, três expedições confirmam certa regularidade de intenções. É Antão Gonçalves que procede a primeira operação de tráfico de negros propriamente dita. Nas paragens da ilha de Arguim, ele troca, por mercadorias vindas da Europa, um pouco de ouro e nove africanos de pele negra. (...)” (PRIORE E VENÂNCIO, 2004, pp.34, 36)."

A expansão portuguesa no período com as novas rotas e “descobertas” fizeram com que a Europa renascesse. Por outro lado, as guerras entre reinos nas diversas regiões da África, os conflitos de gestão e as fragilidades das estruturas dos governos, o não cumprimento de acordos entre tribos locais e a conseqüente escravidão doméstica, uma tradição local, foi um facilitador para que os portugueses e outros europeus, com a benção da igreja católica e também dos protestantes, transformassem aquele aspecto da cultura local na maior ação mercantilista de seres humanos.

Portugal, a partir daí inaugurou a África Atlântica e implantou o Sistema Atlântico, estrutura de negócios da qual participaram a Espanha, Inglaterra, Alemanha, Itália, França, Holanda, dentre outros países e que, por quase quatro séculos, foi responsável pelo seqüestro e comercialização de mais 15 milhões de pessoas chegando ao absurdo, de em certos períodos, um escravo valer mais do que as sua capacidade de produção, considerando os riscos do translado, as condições em que chegava ao seu destino e o ritmo de trabalho ao qual era submetido.

Desta forma, esse legado denominado tráfico de seres humanos se iniciou como uma prática das guerras na antiguidade e se consolidou na história moderna (e contemporânea) a partir das invasões européias ao continente africano, asiático e americano, com a instituição do seqüestro de seres humanos para fins de escravidão e lucros financeiros. Salvo nas ciências econômicas, não há outra ciência que disponha de um instrumento razoável que nos permita aferir o grau, a dimensão dessa humanidade ocidental e de seus atos consumistas, expansionistas e civilizatórios, inspirados e amparados na exploração da escravidão do povo negro de origem africana.

Hoje com a evolução da legislação e da cultura de direitos humanos, podemos entender o seqüestro, em parte, como a privação da liberdade e do livre arbítrio; nesse sentido alguns exemplos recentes nos fazem crer em mega ações de seqüestro perpetradas por Estados Nacionais, como foi o caso do seqüestro do povo chinês de Hong Kong entre 1842 e 1997, do povo negro da África do Sul pelo apartheid de 1924 a 1991, e este que agora está em curso, do povo árabe e da água no Oriente Médio. Tudo sob a luminosidade e as conveniências do que há de mais avançado no Direito Internacional e das nações reunidas em eufóricos convescotes.

A generalização inicial desses aspectos históricos vem com o propósito de estabelecermos um vínculo mais pragmático entre aqueles eventos que se desenvolveram ao longo de uma linha de tempo como mera história de Estados modernos, cuja base foram os direitos individuais, ou de primeira geração, e a história de determinados grupos de indivíduos seqüestrados e traficados, sujeitos de uma dramaticidade que está sob o foco de autoridades e organizações de expressão mundial e do direito internacional. Entretanto o tratamento jurídico aplicado ao tráfico de seres humanos, particularmente o tráfico de mulheres, está muito distante de se consolidar, ainda, como proteção aos direitos de primeira geração e, muito menos, como garantia dos direitos de segunda geração, onde se entende que o Estado deva ser o principal provedor de justiça social, ao contrário, por exemplo, do entendimento internacional que se busca para os direitos de quinta geração, que dizem respeito à tributação do comércio eletrônico, os chamados cibertributos. Quando atribuímos aqui um ordenamento às gerações do direito, o fazemos tão-somente para apontar os momentos de mudança na ordem jurídica, não se devendo depreender que tal ordenamento implica numa ruptura dos novos direito com os direitos já existentes.

O entendimento das causas do tráfico de mulheres implica na compreensão de como o capital derrota famílias e mesmo gerações inteiras de parte de uma população, seduzindo-as

- Texto elaborado para o Seminário Trafico de Mulheres – Alternativas de Solução, realizado pelo Centro de Documentação e Pesquisa da Secretaria de Estado de Direitos Humanos, no Conselho Estadual dos Direitos da Mulher, no dia 22 de outubro de 2004.

com um enredo de esperanças vãs, democracias desprovidas de censo crítico, controle social por meio do poder de polícia e técnicas muito eficazes de comunicação.Tudo isso produz uma urdidura de pobreza, miséria e impotência moral, que transforma muitas jovens mulheres em preciosas mercadorias, uma vez que só lhes resta o corpo como território.

É fato corrente que ao longo dos tempos miséria e prostituição têm sido parceiras inseparáveis. A miséria, não apenas aquela que expressa a penúria de meios quaisquer que garantam condições de existência ao sujeito social; apresenta-se, também, na forma de prostituição, considerada por muitos moralistas como a pior das misérias humana.

A prostituição praticada por pessoas das classes populares como um meio de sobrevivência, embora sujeita à hipocrisia da sociedade, tem o seu lugar, apartado, e uma dimensão cultural institucionalizada. Raras são as prostitutas que chegaram a este fazer por uma opção de exercício de liberdade de escolha. Quase sempre depõem sobre a esperança de “abandonar essa vida”. Mas existe um outro tipo de prostituição corrente, moderna, atrelada e referenciada nos novos aspectos do capital e do consumo.

Neste caso a prostituição transcende valores morais, éticos e até mesmo religiosos e, particularmente na sociedade brasileira, se oferece como um serviço de qualidade e especialização baseadas em características fetichistas que refletem o que há de mais complexo nas relações de consumo. Existe uma dimensão financeira pragmática, onde pessoas de todas as classes sociais e sexos se comercializam (e são comercializadas) atendendo a uma rede de desejos que não é contida por nenhuma restrição de ordem pessoal, onde intermediários e agenciadores têm sempre uma porta aberta para a eventualidade de negociar o tráfico de um ser humano.

Por outro lado há um aspecto novo na atividade, pois um número incalculável de usuários e prestadores de serviço de prostituição tem origem e está situado cultural e economicamente na classe média alta. Embora menos vulneráveis ao tráfico de mulheres, são, na maioria das vezes, pessoas entre dezoito e trinta e cinco anos que a partir da condição de profissionais liberais, advogadas, secretárias part time, vendedoras e intermediários de joalherias, professoras de idiomas, personal treinee, modelos, fazem programas sexuais como uma atividade laborativa, cobrando entre quinhentos e dois mil dólares, podendo chegar a valores mais altos dependendo da disposição do cliente e da qualidade da carne ou mercadoria. Tanto neste tipo de prostituição quanto na clássica a rotina movimenta e sonega ao fisco, inclusive à seguridade social, um volume de recursos nada desprezível, de um mercado em incontrolável expansão.

Deve ser considerado como muito complexo estabelecer que o tráfico de mulheres não está desvinculado da prostituição, como atesta a consultora Gunilla S. Ekberg, do Ministério da Indústria, Emprego e Comunicações da Suécia:

“Um dos pré-requisitos mais importantes para a venda e o tráfico de mulheres é a existência de mercados locais de prostituição nos quais os homens desejam e podem comprar mulheres de seus próprios países. Tais mercados podem ser facilmente expandidos e sempre há espaço para que traficantes, cafetões e adquirentes criem novas demandas."

As demandas dos compradores também se deslocam e mudam constantemente. Os homens que freqüentam bordéis, clubes de strip-tease, casas de massagem, agências de acompanhantes e esquinas de ruas querem ter acesso ilimitado a um variado sortimento de mulheres e meninas de diversos países, culturas e backgrouds. Esta demanda constante por mercadoria nova é o que dita o comércio internacional de mulheres e crianças. Se os homens não tomassem como certo que têm o direito explícito de comprar e explorar sexualmente mulheres e meninas, o comércio feminino não existiria.” (Ekberg, 2002)

Concomitante, amparadas pelas conquistas nos campos dos direitos humanos, as organizações que defendem os direitos das prostitutas se institucionalizaram e buscam consolidar relações sociais, por meio de legislação que garanta a atividade de profissionais do sexo, imprimindo uma ordem regular à atividade de prostituição. Contudo, não é a institucionalização da prostituição pelo Estado que vai conter ou impedir o tráfico de mulheres.

No ano de 1994, quando era então presidente do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas – CEAP, o Programa de Mulheres da instituição realizou a primeira campanha do Brasil contra o tráfico de mulheres. Coordenada pela pesquisadora Joselina da Silva, a campanha intitulada “Tráfico de mulheres é crime – um sonho, um passaporte, um pesadelo”, foi lançada com peças publicitárias (um cartaz em cinco idiomas, folder e revista) dirigidas ao público interno e aos turistas. De caráter eminentemente preventivo e educativo, a campanha teve uma significativa penetração em setores da classe popular, nas organizações de prostitutas, um pouco na mídia, em espaços acadêmicos e com parceiros da cooperação internacional. O que nos surpreendeu no processo de disseminação da campanha foi a sua total rejeição por setores públicos, notadamente aqueles relacionados com o poder de polícia, locais turísticos e nos bares, hotéis, boates e restaurantes da orla marítima, onde não conseguimos afixar nenhum cartaz embora tenhamos sido recebidos com alguma atenção por gerentes e proprietários.

O mercado sexual, da prostituição, do turismo sexual e conseqüentemente do tráfico de mulheres para fins sexuais, absorve em larga escala mulheres e crianças. Essas pessoas guardam um perfil comum de violência que se expressa num histórico intrafamiliar de abuso sexual, estupro, sedução, abandono, maus tratos e violência física. As agressões são praticadas, na maioria das vezes por homens, embora existam casos significativos cujos agentes agressores são mulheres e homossexuais. (INTERAGENCIA, 2005).

No Brasil, independente do fato da maioria das mulheres traficadas serem negras e mestiças (mulatas, caboclas, morenas), o estado de pobreza, como no resto do mundo, é um dos principais fatores que contribuem para o fenômeno do tráfico.

Na Europa dos anos de 1950-60 sob a pobreza do pós-guerra, as mulheres ludibriadas com promessas de trabalho eram traficadas para o Oriente Médio; nos anos de 1970 e início de 1980, com a Europa reconstruída e antes do fenômeno capitalista dos tigres asiáticos os europeus traficavam mulheres asiáticas para aquele continente; durante 1980 com quase todos os países da América Latina sob ditadura e a chamada década perdida da economia, o tráfico ocorre em direção à Europa e alguns países da América do Sul; em meados de 1980, com a África assolada pela fome e pela AIDS, as mulheres são traficadas para a Europa e nos anos de 1990, com a queda do muro de Berlim, ocorre um fluxo imenso de mulheres da Europa Oriental para a Europa Ocidental, não só por vontade própria para o exercício de profissional do sexo, como também pela ação de traficantes.

Percebe-se então, que o traficante e a rede de tráfico de mulheres para fins sexuais atuam de forma eficaz, como se fossem predadores que monitoram o cenário em busca do menor custo de oportunidade. São na verdade agentes do mercado na mais explícita feição capitalista. O discurso predominante é carregado de uma ideologia que dá ênfase à oportunidade. As restrições de ordem jurídica são passíveis de burla, de enfrentamento, de elisões e fazem parte do risco primário pois, se o Estado na sua missão institucional não dá conta de proteger os seus cidadãos, o mercado o faz pela lei da oferta e da procura.

Entre os anos de 1950 e 2004 todo o conjunto de normas, de métodos e de procedimentos necessário ao tráfico de mulheres passou por uma considerável evolução, e essa atividade se compara aos grandes complexos econômicos transnacionais, movimentando milhões de dólares, tal qual as transações com petróleo, as ações de empresas de comunicação, de empresas fabricantes de armamentos, do tráfico de drogas, dos lucros inflacionários no mercado de capital e dos ganhos com a corrupção. Todo esse quadro guarda uma estreiteza aguda com o processo iniciado com o tráfico de seres humanos no século XVI para suprir as Américas com escravos africanos, mas sob uma nova roupagem moral.

Derrotadas pela pobreza e sem perspectivas materiais e sociais de curto ou médio prazos, as jovens mulheres brasileiras, inclusive as de classe média baixa, são seduzidas por agentes que materializam sonhos e esperanças por meio de uma lábia multicolorida, que vai direto ao paraíso dos bens materiais e imateriais. Excluídas, se iludem com a perspectiva de em seis meses de trabalho conseguirem recursos financeiros para se reordenarem economicamente e voltar do estrangeiro, ou de qualquer lugar do Brasil para a terra natal como uma vencedora e se deixam levar, esperançosas, pelas patacoadas e cambalachos.

No conceito da Fundação Contra o Tráfico de Mulheres, da Holanda, o tráfico de mulheres o processo pelo qual as mulheres são levadas à prostituição, casamento, ou serviço doméstico através de um agente ou escritório que, ao agirem como intermediários do negócio, auferem ganhos financeiros. É uma forma de subjugo da mulher, geralmente envolvendo coação, violência, engodo e privação da liberdade, muitas vezes culminando com a morte das mulheres. (CEAP, 1994).

Estudos publicados pelo Centro de Articulação de Populações Marginalizadas classificam o tráfico de mulheres em 5 categorias que são: indústria do entretenimento, casamento, turismo sexual, serviço doméstico e prostituição.

As atividades da indústria do entretenimento, do turismo sexual e da prostituição estão consolidadas no modo cultural de parte da sociedade brasileira, como se pode constatar em jornal diário de grande circulação nacional, dirigido às classes A e B, que anunciou: “Chame 6 e pague 5 com troca R$ 480,00, pernoite R$ 350,00”, ou “2 gatas R$ 200,00, 3 gatas R$ 300,00, 5 gatas R$ 500,00, duas horas”. Trata-se de uma porta aberta para o tráfico de mulheres, independente do mito e ícone da mulata exportação, que por décadas foi o principal mote da indústria do entretenimento no Brasil e no exterior:

“A expressão mulata tipo exportação, criada na década de 1960, por um expert do show business brasileiro, é ainda hoje uma triste verdade. Vendidas internacionalmente como sensuais representantes do glamour das mulheres brasileiras, as mulatas (mulheres negras) são arrebanhadas nas escolas de samba, academias de dança, blocos afro, e nas casas especializadas de showus para turistas”.

Saem como turistas e são recebidas como prostitutas. Muitas vezes, a primeira atitude dos agenciadores ao chegarem ao país de destino, é tomar-lhe o passaporte, a fim de impedir a livre locomoção. Como não têm domínio da língua, ficam isoladas, e ainda mais, por não conseguirem contatar outros brasileiros.

Em função das leis européias, essas mulheres só conseguem permissão de trabalho como gogo girls (dançarinas de casas noturnas) por um período de no máximo, três meses. (...) a coordenadora da campanha ‘Tráfico de Mulheres Crime’, Joselina da Silva (Jô), conversou, na cidade de Roermond (Holanda, fronteira com a Alemanha e Bélgica), com Rohlee, do Centro de Apoio às Mulheres Filipinas. Rohlee informou que Roermond era uma cidade importante para os traficantes pois as mulheres circulam pelos três países, à medida que venciam seus prazos de permanência em cada um deles.

Com raras exceções, as condições e o tipo de trabalho são devidamente esclarecidos ou constam dos contratos, na maioria das vezes escritos num idioma que não é dominado pela mulher que está sendo contratada. Algumas das cláusulas contratuais dificilmente discutidas com as dançarinas são a de fazer sexo com os clientes do clube onde estão dançando e de usar sua capacidade de sedução para levar os clientes a consumirem mais bebida. Muitas, no afã de aumentar sua cota mensal, acabam bebendo junto com os clientes, terminando por morrer de cirrose, DTS/HIV, Aids e mesmo depressão”. (CEAP 1994)

Vale aqui um breve comentário sobre o tráfico de mulheres para o casamento e para o serviço doméstico. No que se refere ao casamento, nos encontros que são promovidos por agentes, há um entendimento de que “as brasileiras são boas esposas, trabalhadeiras, servis e sempre prontas para o sexo”. Um dos processos se estabelece primeiro pela circulação da informação de que existe e está disponível um solitário e romântico, na maioria das vezes europeu, apaixonado pelas belezas do país e, principalmente, pelo jeito meigo, faceiro, belo e dócil da mulher brasileira. Depois vem a troca de fotografias, onde são apresentados o sujeito pretendente, a casa onde viverão e os equipamentos da casa. Por fim o encontro físico, o reconhecimento, a manifestação de interesse, o sexo e um estreitamento de laço afetivo, muitas vezes construído à vista dos parentes da moça. Em menos de três meses, lá vai ela toda boba, toda encantada, sem conhecer a cultura do parceiro, sem conhecer o país do parceiro, sem falar o idioma do parceiro. E fica lá sem o passaporte, sem liberdade e sem território, por que o seu corpo, reduzido à condição de corpo de esposa, serve apenas para os fazeres e prazeres das obrigações conjugais.

É verdade que existem casos exitosos, em que os sintomas da paixão florescem, o desejo se organiza como uma troca de interações, o carinho, o afeto e o companheirismo enredam um sentimento de amor sob o qual a família dessa mulher se estrutura, e a vida se manifesta pela felicidade. Na coleta de depoimentos para um trabalho que está sendo realizado e que coordenamos no Instituto Palmares de Direitos Humanos – IPDH, sobre casamentos inter-raciais entre pessoas brasileiras e estrangeiras e a visão sobre o racismo, pode-se constatar que, no caso de homens estrangeiros que se casaram ou vivem com mulheres negras brasileiras, todos já tinham visitado cidades do nordeste e o Rio de Janeiro pelo menos uma vez. A motivação principal era o turismo, mas tinham conhecimento, ou perceberam a existência do turismo sexual nessas regiões.

Em relação ao trabalho doméstico, é uma forma de tráfico que se assemelha em muito com o trabalho escravo. A idéia escravocrata de anexar um semovente à família para os trabalhos domésticos existe até hoje e em larga escala, principalmente no norte e nordeste do Brasil. Meninas de 12, 13 anos recebem casa e comida pelo trabalho de babá e outros afazeres da casa onde são “acolhidas” e chegam aos 50, 60 anos como um utensílio adestrado para amar os patrões e seus descendentes. Na maioria das vezes sem nenhum direito social, ou mesmo salário, apenas uma benevolência maléfica, difícil de ser denunciada, pois nesses tipos de relação são construídos laços afetivos de intensa ignorância e dependência.

Uma outra situação é a que se estabelece quando empregadas domésticas viajam para servir executivos e diplomatas brasileiros, como o relatado na publicação do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas:

“Em 1990, nos Estados Unidos, a brasileira Nair Jane, então presidente do Sindicato de Empregadas Domésticas - RJ, acompanhada por Joselina da Silva, visitou uma organização de apoio às empregadas em Washington. O caso mais freqüente entre elas, era o de empregadas domésticas de diplomatas, obrigadas a trabalhar sem horas e dias de folga, além de terem seus passaportes seqüestrados pelos patrões e os salários retidos pelos empregadores. O mesmo risco correm mulheres contratadas por agenciadores no Brasil, que viajam para encontrar no exterior, seus patrões. Muitas sofrem agressões físicas, sexuais e psicológicas”. (CEAP, 1994)."

Todas as formas aqui apresentadas e que são as mais comuns no Brasil, guardam requintes de crueldade, com implicações de natureza moral e psicológica, que impõem às vítimas a vergonha, a desonra e o silêncio que lhes corrói a natureza humana, a ponto de não conseguirem, quando livres, formularem denúncia, em função da relação que se estabelece entre as vítimas e seus algozes. Estas pela culpa da escolha errada, pelo sofrimento que se auto impôs, pelo medo. Aqueles pelas ameaças contra a vida e contra a família, pelo poder da organização, mas, principalmente, pela cumplicidade que se estabeleceu, como se houvesse consentimento da mulher àquela aventura desastrosa e fazendo com que ela própria se perceba como sendo também uma criminosa.

É forte o movimento internacional contra o tráfico de mulheres. Iniciativas como as da Coréia do Sul, que recentemente, no ano de 2004, instituiu lei proibindo a prostituição e que provocou a reação de três mil profissionais do sexo e donos de prostíbulos, devem ser observadas com acuidade, pois um posicionamento do Estado brasileiro nesta direção não resolveria o problema do tráfico de mulheres e muito menos atenderia aos interesses de milhares de pessoas que se remuneram como profissionais do sexo.

Ao longo do ano de 2002, os países nórdicos e bálticos realizaram oito campanhas contra o tráfico de mulheres, por iniciativa da Ministra para Questões de Igualdade entre Gêneros, sra. Margareta Winberg.

Em novembro de 2004, tive a oportunidade de ser um dos coordenadores do “Seminário sobre Tráfico de Seres Humanos e Exploração Sexual”, realizado no Museu de Arte Moderna, numa cooperação entre a Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro e a Embaixada da Suécia no Brasil. Uma das atividades do seminário foi o lançamento do filme “Para Sempre Lilya”, do diretor sueco Lukas Moodysson. Ao selecionar os participantes das mesas de debates indiquei o nome de pessoas representantes de organizações não-governamentais que trabalham com pesquisa e defesa de prostitutas, pois considero que essas entidades desempenham papel de significativa relevância ao tema. De forma gentil, mas bastante incisiva, uma das ministras da embaixada que organizava comigo o seminário, explicou sobre a impossibilidade de participação de representantes daquelas organizações no evento, uma vez que a posição do governo sueco é de absoluto combate a toda e qualquer forma de prostituição.

Ratificando tal posição, matéria publica pelo Instituto Sueco em novembro de 2004 divulga que como desdobramento da conferência Mulher e Democracia, realizada em 2001, os ministros para questões de igualdade entre gêneros dos países nórdicos e bálticos, decidiram cooperar para uma tentativa de interromper o tráfico de mulheres, por meio de uma campanha conjunta, especificamente em relação à Suécia:

“A campanha sueca enfoca particularmente os homens que usam mulheres e crianças prostituídas (principalmente meninas) na Suécia e no resto do mundo. (...). Ao assinar o Protocolo das Nações Unidas para Evitar, Suprimir e Punir o Tráfico de Pessoas, o Governo sueco se comprometeu a processar traficantes de seres humanos e a tomar medidas de combate ao crime organizado. Um elemento deste trabalho é um novo crime descrito no Código Penal Sueco como tráfico de seres humanos para finalidades sexuais (2002). Este crime se refere ao tráfico de seres humanos através de fronteiras, com a finalidade de os sujeitar a determinados crimes sexuais graves, a os explorar para relações sexuais temporárias, ou a os explorar de alguma outra forma para finalidades sexuais. A punição é o encarceramento por, no mínimo dois anos e no máximo dez anos, ou se o crime for menos grave, encarceramento de até quatro anos. Tentativas, preparativos e conspiração para finalidades sexuais, assim como a omissão em informar tal tipo de crime, também são passíveis de punição”. (Dados sobre a Suécia, p. 9 e 10)."

Durante a década de 1990 ocorreu uma certa imobilidade do Estado brasileiro que não era condizente com a gravidade da situação. Um dos sintomas dessa imobilidade é que ainda hoje é difícil produzir estimativas de quantas mulheres são traficadas no Brasil. Se eventualmente a Polícia Federal consegue prender uma traficante, como foi o caso em Belém do Pará (em outubro de 2004), quando duas mulheres iam ser embarcadas pela rota do Suriname, outras tantas saem pela Bolívia, pelo Paraguai, pelo Rio de Janeiro e São Paulo, além do tráfico interno com mais freqüência para as grandes capitais e cidades com mais de 50 mil habitantes.

O país possui uma legislação exeqüível, além de ser signatário de diversos tratados internacionais, inclusive o da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Resolução 34-180, Assembléia Geral da ONU, 18-12-1979), onde as questões sobre prostituição e tráfico de mulheres foram discutidas ao extremo e constam do artigo sexto da Convenção, ratificada pelo Brasil em 1 de fevereiro de 1984.

No dia 6 de outubro de 2004 foi lançada em Goiânia, pelo Ministério da Justiça e o Escritório da Nações Unidas Contra Drogas e Crime, a Campanha de Combate ao Tráfico Internacional de Seres Humanos, com destaque para o problema do tráfico de mulheres. A campanha prevê uma série de medidas do governo, principalmente aquelas voltadas para a capacitação de policiais federais, promotores e juízes e de outros funcionários cujo ofício implique no entendimento do significado do tráfico de seres humanos.

Em Portugal, país também signatário dessa Convenção, o jornal A Página, em artigo que se refere ao tráfico de mulheres, situando o Programa do XV Governo Constitucional, destaca que: “O papel do Estado é fundamental: nem a política de não ingerência nos assuntos privados nem os valores e costumes tradicionais podem ser invocados para impedir a luta contra a violência (...)”. E acrescenta: “Importa rever a legislação vigente, nomeadamente no que se refere à situação de mulheres imigrantes vítimas de violência, (...) garantir a admissibilidade de autorização especial de residência para as estrangeiras vítimas de tráfico, de modo a capacitá-las a testemunhar em processo sem receio de represálias a curto ou longo prazo, dirigidas a si próprias ou a familiares, em Portugal ou no país de origem”.

Percebemos aqui uma manifestação de intenção de acolhimento às vítimas do tráfico para além da mera assistência. O articulista aponta para a necessidade de que a vítima seja capacitada para testemunhar contra os traficantes e de receber proteção do Estado contra os mesmos.

Na região da Romênia, a Moldávia também passou pela crise provocada pela onda neoliberal e em 1994/95 a emigração ilegal se alastrou com a crise econômica e estima-se que entre 600 mil e 1 milhão de pessoas deixaram o país, dos quais 70% são mulheres entre 18 e 45 anos, com destino aos principais centros de prostituição da Europa Ocidental.

Naquele país, em fevereiro de 2001, foi criado o Centro de Prevenção do Tráfico de Mulheres - CTPM, gerenciado pela Ong Associação de Mulheres Advogadas, que recebeu de imediato um financiamento de U$ 123,000.00 do PNUD, do Departamento de Estado dos Estados Unidos e da organização sueca Fundação Mundial da Infância. A Dra. Jana Constachi, diretora do Centro, informa que os objetivos da organização são simples. Manter as meninas e mulheres da Moldávia fora dos prostíbulos do mundo e que buscam alcançar esta meta por meio da educação, da prevenção e da promoção de ações penais.

Existem muitas semelhanças entre o Brasil e a Moldávia, principalmente pelo tráfico de mulheres ter se instalado por conta da pobreza e da miséria produzidas pelas elites de ambos os países. A questão é que, tanto lá quanto aqui, as iniciativas das ONGs não podem e não devem substituir o papel do Estado.

O CTPM usa como estratégia de combate ao tráfico de mulheres campanhas agressivas dirigidas às potenciais vítimas desse crime. Em dois anos de atividade cobriu todo o país com mais de 231 programas de rádio, nove documentários para TV transmitidos por 15 canais locais e nacionais, 100 artigos informativos, cartazes, anúncios e editoriais que alcançaram quase que todos meios de comunicação da Moldávia, além de capacitarem 100 jovens voluntários para a realização de palestras e seminários pela zona rural do país e de distribuírem mais de 100 mil cópias de brochuras, folhetos educacionais e revistas tratando sobre o tema tráfico de mulheres. Quanto a parceria com o Estado moldavino, o CTPM desenvolve programas em módulos de treinamento para policiais, guardas de fronteira, promotores públicos, juízes e outros funcionários públicos buscando acentuar a atenção e a ação penal contra o tráfico de seres humanos.

Para se implementar um conjunto de ações que apontem alternativas de solução contra o tráfico de mulheres no Brasil, não basta apenas a intenção laborativa de se produzir respostas a uma conjuntura internacional. É necessário o desenvolvimento de uma proposta que tenha por base pelo menos quatro vetores de ação.

O primeiro de caráter organizativo, construindo as relações entre o Estado e a sociedade civil, onde devem estar definidos os recursos e meios, as tecnologias disponíveis, a metodologia de tratamento de informações, a análise do impacto das ações e as articulações e correlações com as redes internacionais de combate ao tráfico de mulheres.

O segundo vetor trata da estruturação de conteúdos de natureza educativa e preventiva, com a produção de materiais específicos para cada região do país, dirigidos para o segmento de crianças e adolescentes e de jovens e adultos, com observância das questões relativas ao tráfico interno, e da construção de acessibilidade contínua aos meios de comunicação tradicionais e das mídias alternativas.

O terceiro vetor expressa a linha de marketing a ser adotada como publicidade da ação contra o tráfico de mulheres. No que a letra da Lei permitir, devem ser produzidos e distribuídos em aeroportos, rodoviárias, agências de viagens e outros locais públicos, cartazes com fotos de traficantes de mulheres, procurados ou condenados no Brasil ou no exterior, o artigo do Código Penal, e quantos anos terá como pena a ser cumprida, para que possa ser reintegrado à sociedade depois de passar pelo processo de reeducação prisional.

E finalmente o quarto vetor, que trata da política de capacitação sobre as questões do tráfico de mulheres, orientada para funcionários públicos, professores, agentes de viagens, gerentes de casas de entretenimento, buscando marcar uma presença contínua nesses setores, de tal forma que um simples convite para um seminário sobre prevenção e combate ao tráfico de mulheres, sirva como apontamento de que existe um setor organizado da sociedade para intervir contra a ação predatória dos traficantes.

A Secretaria de Estado de Direitos Humanos do Rio de Janeiro, por meio da Subsecretaria de Direitos Individuais, Coletivos e Difusos, desde meados de julho vem estudando as formas e os meios para instalar o Comitê de Combate ao Tráfico de Seres Humanos, onde a questão do tráfico de mulheres, certamente, receberá tratamento mais específico. A orientação é de que o Comitê tenha uma ampla composição, com a participação de órgãos dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, das ONGs, das Universidades e Centros de Pesquisa, de tal forma que se possa atuar no combate ao tráfico de seres humanos, não só com base nos aspectos legais mas, principalmente, pela indignação que tais práticas provocam em todos nós, pessoas públicas e comprometidas com a garantia dos direitos humanos.

Bibliografia

Material retirado da internet: 

COSTACHI, Jana. Prevenção da Vitimização na Moldávia. Disponível em:

  • http://usinfo.state.gov/journals/itgic/0603/ijpg/gi07.htm (acessado em 11-10-2004)
  • http://www.jbcultura.com.br/mmeroe/etiopia.htm (acessado em 18/01/2005)
  • www.interagencia.com.br/oit/htsite (acessado em 11/02/2005)
  • Artigo do Jornal A Página: disponível em http://www.apagina.pt/arquivo/Artigo.asp (acessado em 11-10-2004)

Periódicos

  • Dados sobre a Suécia. Instituto Sueco, Brasília, Mimeo, 10p. Novembro 2004.
  • O Globo, Classificados, 21 de outubro de 2004.
  • Revista Tráfico de Mulheres é Crime! Um sonho, um passaporte, um pesadelo. Centro de Articulação de Populações Marginalizadas, RJ, 1994.
  • EKBERG, Gunilla S. Debate Internacional sobre Prostituição e Tráfico de Mulheres: Refutando Argumentos. Suécia, Mimeo, 15 p. 2002.

Obras

  • PRIORE, Mary Del e VENÂNCIO, Renato Pinto. Ancestrais – uma introdução à história da África Atlântica. Rio de Janeiro: Campus, 2004.

Resumo

Tomando como referência histórica a expansão ultramarina pela Europa no século XV, que dentre os objetivos estava o de estabelecer novas rotas de comércio para aquele continente, e assim concorrer com os mercadores mulçumanos, os europeus chegam à África, então denominada por eles por Etiópia.

Portugal se torna o primeiro país a ocupar as terras africanas, ao mesmo tempo em que tem início a colonização das Américas. Os portugueses estabelecem o tráfico de negros africanos para fins de trabalho escravo e criam o Sistema Atlântico, estrutura responsável pela comercialização de aproximadamente 15 milhões de seres humanos.

O artigo demonstra que superada a escravidão, o tráfico de pessoas - particularmente o de mulheres para fins sexuais - se instala com uma nova dimensão econômica e se expande por rotas continentais. Os estudos consultados sobre esse assunto apontam a pobreza, e citam a prostituição, como uma das principais causas desse fenômeno. Destaca, ainda, as iniciativas da ONU no combate a esse tipo de tráfico e a ações de países como o Brasil, a Moldávia e a Suécia como exemplares no combate ao tráfico de mulheres para fins sexuais.

Palavras-chave

Tráfico; mulheres, escravidão; sistema atlântico; negros; crianças.