semogdaggarehrh

A Utopia da Dominação

É sempre um desafio para todos nós, nesse tempo de globalização, de mercados estruturais e de produção de um pensamento único nos campos cultural, político, e social, sermos chamados a refletir sobre cultura, folclore, literatura e identidade.

É sempre um desafio para todos nós, nesse tempo de globalização, de mercados estruturais e de produção de um pensamento único nos campos cultural, político, e social, sermos chamados a refletir sobre cultura, folclore, literatura e identidade. Na verdade, reflexões desta natureza guardam um quê de insubordinação frente ao determinismo da indústria cultural, à mesmice acadêmica e à apática indiferença governamental no trato com os acervos e as produções culturais brasileiras, notadamente aquelas de origem popular, que se caracterizam como vetores ativos da identidade cultural brasileira, constituindo-se este estado de coisas numa contradição explícita em relação à idéia de autonomia, nação, pátria e outros aforismos produzidos pelos estados nacionais nos meados e fins do milênio passado.

Ao buscar os caminhos para a construção deste texto deparei-me com algumas lembranças de infância, familial e comunitária, que dizem respeito a um modo de vida singelo, marcado por rituais e posturas, que iam desde a compra de um leitão no mês de fevereiro, para ser engordado e dividido no natal entre os vizinhos da vila onde eu morava, até as rezas contra espinhela caída, quebranto e mau olhado.

Naquela minha infância, aos domingos os mais velhos dançavam e tocavam sambas e modinhas do cancioneiro popular. Contavam histórias dramáticas, que me causavam um medo cheio de curiosidade e morbidez infantil, sobre heróis e bandidos; mulheres vingadoras; crianças raptadas pelos ciganos... e de escravos que rogavam pragas infalíveis aos brancos cruéis e sanguinários. Na quaresma os santos das casas eram cobertos com um pano roxo, embora todo mundo continuasse a ir aos seus candomblés, centros espíritas e macumbas. Se bem me lembro, não sei se era nesse tempo da quaresma, os candomblés, também não faziam nada. Só ficavam lá com aquilo tudo sagrado, mas em silêncio. Muito raramente, alguém da casa, ajudava alguém que precisasse resolver alguma coisa grave.

No dia-a-dia, sempre, havia alguém precisando tomar um chá de quebra-pedras, para os rins, ou uma garrafada para afinar o sangue, ou um banho de arruda, guiné e aroeira para abrir os caminhos. Para as crianças, uma vez por mês em jejum, um repugnante sumo de saião com erva de santa Maria, que descia goela a dentro estragando todos os sabores do dia, mas que era muito bom para os pulmões e contra ‘as vermes’.

Esta pequena ilustração, de pequenos registros não escritos àquela época, era um pouco do que nos mantinha culturalmente vivos. Era a pulsão de vida de um corpo coletivo, num sítio que continha um saber e se articulava com outros sítios, que igualmente guardavam e produziam saberes, independentes e diferentes dos saberes do direito, da medicina, da antropologia, da economia, da pedagogia, da sociologia, da psiquiatria e da psicologia, que eu compreendo, mas me sinto meio maluco. Sou de uma gente que entende as coisas do mundo de uma forma mais simples. Por exemplo, as frutas não nascem em caixas de sucos. Nem o leite. As frutas nascem das plantas para serem comidas pelas pessoas e as pessoas só precisam beber leite enquanto dependem da mãe. Nunca vi um elefante de 15 anos bebendo leite. Nunca vi um cachorro de 1 ano mamando. Nunca vi um cágado.... bem... cágados não mamam.

Na minha vida familial e comunal existiam modos de ser e de estar, de fazer as coisas, de cumprir os ritos e procedimentos, que se ratificavam como verdadeiros pela freqüência das curas e dos resultados satisfatórios; pelas implicações na violação dos valores morais, e pelas punições físicas e materiais decorrentes da quebra dos contratos religiosos com os orixás. Naquela noção não determinista de mundo, uma das poucas coisas que as pessoas não podiam se precaver era contra os golpes de vento que causavam sérios danos à saúde.

A humanidade se constrói por meio de memórias coletivas e este é o seu sentido mais humano, quando articulado com o espírito especulador e empreendedor do homem. Nisto reside a razão desta, ainda limitada, racionalidade que contemos.

Ao longo da construção do conhecimento e na medida em que o homem foi aperfeiçoando as suas habilidades, tornando mais complexas as suas relações entre meios físicos e grupos sociais, esteve presente nesse trajeto a idéia de dominação, como um componente intrínseco da mobilidade humana.

Essa idéia de dominação tem duas dimensões: uma empírica, baseada na experiência concreta, que ao longo do tempo vai superando o estado da arte. É o caso da domesticação e produção do fogo, da água, das plantas, da energia solar. É a ação do homem no meio físico usando os recursos disponíveis que as ciências exatas e naturais podem lhe proporcionar explicações.

A outra idéia de dominação tem uma dimensão utópica, que embora se estruture sob a perspectiva de domínio de espaços, territórios e culturas, lidam com a volatilidade do ser, do espírito; com o simbólico, com estruturas e reações coletivas e individuais da psique, onde comportamentos cheios de subterfúgios e subjetividades são constituídos numa linha de tempo que, quanto mais avança mais se refaz, causando a sensação contraditória de uma imaterialidade constante, mas também empírica. Talvez um modelo, talvez um paradigma sendo constituído. Um interessante fato ilustrativo do fracasso da utopia da dominação foi quando no fim do sistema escravista, e depois ao longo da República, no Brasil, a inteligência nacional tomou uma série de medidas para o embranquecimento da nação, estimando que em menos de cem anos não existiriam mais negros no país. Mas o que ocorreu e surpreende até hoje, foi uma verdadeira etnogenese do povo negro.

É sobre essa complexidade que nos interessa refletir, pois não existe tempo que permita ao homem materializar a utopia da dominação sobre outro homem.

Estabelecer uma relação entre cultura e folclore delimitando as linhas conceituais entre estas expressões, e ainda, decodificar o que há de comum ou de estranho, entre literatura e identidade, não pode ser uma atitude que se resuma a um procedimento culturalista, uma redução do entendimento de grupos sociais.

Até o ano de 1846 na Inglaterra, os contos e lendas, usos, costumes e crendices, eram denominados como antiguidades populares e literatura popular. Foi nesse período que Willam Jonh Thoms, um arqueólogo britânico, propôs o uso da palavra folklore, por considerar que este termo era mais apropriado para designar os fatos classificados como antiguidades populares, que no seu entendimento constituíam um primoroso saber popular.

A relação simbiótica entre folclore e literatura se estabelece, à guisa de arroubos científicos, quando por um longo tempo os estudiosos passam a considerar que ao utilizar um texto folclórico na obra, o literato possibilita um valor cultural que o folclore não tem, permanecendo apenas como um recurso da narrativa e da construção estética do autor no seu universo de norma culta.

A esse respeito, é bom recorrer ao mestre Florestan Fernades, que em artigo publicado na Folha da Manhã (12/01/1945, SP) nos diz:

“O aparecimento dos folcloristas modificou um pouco essa visão das coisas. De um lado porque eles distinguiam o folclore (...) em folclore subjetivo, em que se procura sistematizar e estudar os elementos folclóricos, buscando por ai atingir uma formulação científica e teórica, sob os auspícios do positivismo, e em folclore objetivo, item sob que seriam agrupados todos os elementos folclóricos, todas as danças, as cantigas, as superstições, as crendices, os provérbios, aqueles modos de ser e de agir típicos de um povo e de uma região, (...)”.

(...).“Os folcloristas do século XIX e alguns deste século, entretanto, desvendaram um novo modo possível de se encarar as relações entre folclore e literatura – ou, mais precisamente, de situar um e outro, partindo do próprio conceito de folclore. O folclore seria a cultura dos meios populares, das camadas baixas da população – nas zonas rurais e urbanas – em poucas palavras: a “cultura dos incultos”. Era, pois, o conjunto de conhecimentos, técnicas e modo de ser dos iletrados, transmitido oralmente. Distinguia-se da literatura , cultura dos meios elevados, dos letrados e dos “cultos”. A diferença entre literatura popular e literatura erudita é apresentada como uma diferença fundamental, de natureza: duas formas culturais antagônicas e, em certo sentido exclusivas. (...) O burguês e o homem do povo (...) seriam expressão desse antagonismo. Aquele vivendo a idade positiva cotidiana, pensando racional e logicamente as coisas, capaz também de progresso, enquanto o segundo revelaria uma etapa anterior ao desenvolvimento das sociedades ocidentais surgindo como um homem imobilizado pelo passado e sufocado sob o peso da tradição, pensando as coisas de modo anti-racional e ilógico. A diferença de mentalidade seria irredutível. Contudo, ela não é inata: o homem herda-a socialmente, revelando-a à medida que traduz o seu próprio meio social e cultural, a sua “cultura” – sua literatura e o seu folclore”.

Os folcloristas de uma maneira geral, vêm dando ao folclore uma dimensão cientifica, com um novo olhar e uma nova interpretação das manifestações e saberes populares, que ultrapassa a etapa dos registros sobre o pitoresco e o exótico. Mas de forma alguma essa atitude deve ser entendida como um altruísmo epistemológico.

É a voracidade do mercado que se manifesta em busca de novas matérias primas, que para o consumo podem e devem assumir um novo patamar como produto, sem, contudo alcançar o status de referencial cultural, pois o mercado é um dos principais vetores da utopia da dominação.

Em termos de conjuntura e de contexto, o que nos interessa aqui é acirrar e superar as contradições de um Estado etnocêntrico dentro de uma nação pluriétnica e multicultural, buscando estabelecer uma dimensão solidária, funcional, patrimonial e econômica para as expressões da cultura afro-brasileira, nos seus mais singulares aspectos.

O legado histórico das organizações das décadas de 1930,1940 e 1950, como a Frente Negra Brasileira, a União dos Homens de Cor, o Teatro Folclórico Brasileiro, o Teatro Experimental do Negro, as associações e clubes, possibilitaram uma avaliação, ainda que assistêmica, das lutas contra o racismo no Brasil. Do fim da década de 1960 e durante todos os anos de 1970 iniciou-se um forte processo de reorganização e institucionalização do movimento negro brasileiro, que se consolidou nos anos de 1980 e 1990.

Com uma herança predominantemente cultural, o movimento negro passa a enfrentar uma dicotomia ideológica traduzida pela idéia de ascensão individual, de cunho meritório e o de crescimento coletivo, de fundamento comunal. Essa dicotomia, ora manipulada pelas elites da esquerda que no Brasil, com toda a sua dialética científica, jamais considerou o trabalho escravo e suas conseqüências como uma dimensão da luta de classes, também era manipulada pela direita, com o seu mito do escravismo dócil e gerador da imponderada democracia racial.

É sob esse conflito que as expressões da cultura negra afro-brasileira estabelecem marcos de rupturas, de politizações e de construções de novas estéticas. A música, a literatura, o teatro, a dança, as artes plásticas, a imprensa, provocam uma onda de negrícias e negritudes, de consciência e de posturas jamais vistos na história da República. É a recodificação do ser negro na sua humanidade mais plena, é a retomada do corpo como território da existência. É a identidade da beleza, é a singularidade poética, é o pertencimento da cor atrelado na história coletiva e na auto-história.

O enfrentamento com a cultura produzida pelas elites brancas, patrocinada e assimilada pelo Estado como cultura oficial brasileira, foi inevitável, tanto no campo acadêmico quanto nos espaços lúdicos, sobretudo no que se refere aos confrontos estéticos e também teóricos, da literatura, das artes plásticas, do teatro, da dança e de outras expressões.

Especificamente no que se refere à literatura, tive a oportunidade de construir e de vivenciar, a gênese da literatura afro-brasileira. Éramos, no início um coletivo de escritores negros, depois um movimento dos poetas e ficcionistas negros brasileiros, não mais que 30 escritores e escritoras negros definindo uma literatura racial no Brasil.

Definindo literatura negra, com personagens e um universo existencial carregado de paixões, de vitórias, de amor entre negros, com as suas histórias de cheiros e sabores, de desejos, e das memórias atávicas de banzos que ainda nos dizem forte quem somos e de onde viemos. Construímos a narrativa da identidade essencialmente humana, sem a angústia de Cruz e Sousa, sem a agonia de Lima Barreto, sem a solidão de Machado de Assis, mas com a mesma intenção de inovação a que eles se propuseram. Fizemos uma literatura de construção de identidade e caminhamos com ela pelas escolas, associações de moradores, presídios, bares e bailes. Onde houvesse negros ou gente nós estávamos lá. Negros e letrados, com gingas, gestos, modos e ortoépia.

Éramos, portanto diferentes do que a poética, o romance e a literatura infantil, produzidos pelos grandes literatos brasileiros expunham sobre o negro. Nos nossos textos, de literatura negra brasileira, nossos homens não são negros sombrios, bestializados, ou malandros incorrigíveis... Nossas mulheres não são lascivas, fogosas, prontas para o coito atrás de uma moita ou na cama de um senhor e, muito menos, as nossas crianças não são negrinhos que grunhem, saltitantes e obedientes como montaria da infância dos brancos. E os nossos velhos, não são estorvos resignados na cozinha de um sítio, ou no fundo de um terreiro. No nosso texto, no texto da literatura negra, os nossos velhos são partes da nossa memória e por isso são as histórias dos nossos destinos.

A grandeza dessa atitude cultural e política da comunidade negra não poderia ficar impune. O Estado brasileiro isentando e protegendo a sociedade racista de responsabilidades, tratou de produzir mecanismos democráticos, dentre os quais as leis de incentivo cultural, intransponíveis muralhas para o acesso da comunidade negra aos recursos públicos.

Não será surpresa alguma que se constate numa breve pesquisa, verificação documental, que dos recursos aprovados como renúncia fiscal pelo Ministério da Cultura e pelas secretarias estaduais e municipais de cultura, destinados a projetos de artistas negros ou propostos pela comunidade negra, que esses artistas e comunidades tenham conseguido captar, numa estimativa bastante otimista, nada além entre 3% a 5% do total aprovado.

Esse é apenas um dos modos de retaliação, discriminação e tentativa de aniquilamento da cultura negra afro-brasileira, que estruturada desde há muito numa perspectiva transformadora, não se retrai, não se acomoda. Pelo contrário, imprime e impõe à nação, com um pragmatismo invulnerável, modos de existir que perpassa o povo e as instituições, de tal forma que a cada ciclo se torna inevitável a consolidação da identidade nacional carregada de negritudes e africanismos explícitos, por exemplo, no carnaval que é uma das maiores festas culturais étnica do mundo.

Devemos considerar, entretanto, que se por um lado as restrições à expansão da cultura negra eram e são sufocantes, por outro, a ação do movimento negro ultrapassava a prática da micro-politica e da política regional, atingindo dimensões nacional e internacional.

Dois fatores merecem destaque nessa etapa da luta da comunidade afro-brasileira. O primeiro diz respeito a capacidade do movimento negro de produzir denúncias sobre a prática do racismo no Brasil, descaracterizando a tão endeusada democracia racial, e o segundo se refere ao processo organizativo das entidades negras, que definem áreas de atuação, se inserem no campo das organizações não-governamentais, estabelecem fóruns próprios e passam a ser interlocutoras com os diversos níveis de governo.

O conhecimento científico sobre a realidade social e econômica da população afro-brasileira, a articulação com os partidos políticos, o entendimento da legislação e da estrutura do estado, possibilitaram conquistas nominais consideráveis, desde a Constituição da República de 1988, até nos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, mas que ainda não se consolidaram como ganhos estruturais. E somente com ganhos estruturais será possível descontinuar a eterna utopia da dominação.

[1] texto elaborado para o evento Arte Negra Brasileira em Exposição, promovido pelo Instituto Negro de Arte e Cultura (INAC), Salvador, Bahia, 13 a 31 de agosto de 2003.